Veia solidária. Em Braga há 35 dádivas de sangue por dia e a medula de Paulo já salvou um inglês

Hospital de Braga, piso zero, banco de sangue. Entre as 9h00 e as 13h00 e as 14h30 e as 18h30, costumam passar por este serviço cerca de 35 pessoas, que correspondem, normalmente, a 35 dádivas.

O processo, que dura cerca de 40 minutos, começa na receção, sendo necessário apenas o cartão de cidadão e o preenchimento de um inquérito, para que possa ser avaliada a condição do dador. Também aqui pode ser dada a indicação de que pretende tornar-se dador de medula óssea, além de dador de sangue. Segue-se uma consulta médica, onde é esmiuçada a situação clínica da pessoa que, caso haja luz verde, segue para zona de colheitas. Ali, o enfermeiro prepara todo o processo e é retirado o sangue.

“São 450 mililitros, uma quantidade que o nosso corpo pode dispor sem problema e ao fim de 24horas estamos a recuperar o sangue que foi dado”, garante António Marques, diretor do serviço de Imunohemoterapia do Hospital de Braga. Para segurança do dador, as dádivas devem ter um espaçamento de três meses, no caso dos homens, e de quatro, no caso das mulheres.

“O sangue vai ser filtrado e, neste aspeto, somos dos países que começou mais cedo a fazê-lo. Foi por altura da doença das vacas loucas e melhorou espetacularmente a qualidade do sangue. Depois, o sangue vai ser centrifugado, um procedimento que permite separar os glóbulos vermelhos das plaquetas e do plasma”, explicou. Segundo o médico, as plaquetas são necessárias todos os dias, sobretudo na oncologia, devido aos tratamentos agressivos que são praticados, como as quimioterapias. Este componente sanguíneo tem uma validade temporal limitada, duram cinco dias armazenadas. Os góbulos vermelhos duram 40 dias e o plasma dura um ano, se for congelado a -30 graus celcius.

Um dos alertas deixado por António Marques está relacionado com o agendamento das dádivas.

“É necessário termos um número de dadores permanente, mas não convém que venham todos no mesmo dia, porque, depois, o sangue e as plaquetas acabam ao mesmo tempo”. Por isso, sempre que for possível, é solicitado ao dador que faça um agendamento prévio da dádiva, através do 253 027 152 ou do e-mail bancodesangue@hb.min-saude.pt

“Precisamos permanentemente de sangue. Se tivermos um acidente e dois doentes levarem 20 a 30 unidades de sangue serão necessárias 60 unidades e aí já ficamos mal. Se não tivermos o sangue, um doente com trauma vai morrer”, alertou.

Neste momento, no Hospital de Braga “tem havido uma afluência razoável de dadores”, o que permite ter “o stock estabilizado”, mas o cenário pode mudar a qualquer momento.

Desde o início do ano, foram já efetuadas mais de 5300 dádivas, nesta unidade hospitalar. O objetivo é atingir as sete mil dádivas até ao final de 2022. Todo este sangue é necessário, porque, além dos doentes com trauma e oncológicos, que necessitam de transfusões, há também um fenómeno que se tem agravado, o das pessoas com idade elevada. “A população envelheceu e há muitas pessoas de idade que se anemiam e precisam de sangue para se manterem vivas”, explicou o diretor.

Podem dar sangue todas as pessoas saudáveis, entre os 18 e os 65 anos, que pesem pelo menos 50 quilogramas. No entanto, há várias condições que o podem impedir no momento, como a toma de anti-inflamatórios há menos de 5 dias e de antibióticos há menos de 8 dias, tratamentos dentários, ter estado com febre ou ter feito uma tatuagem ou piercing há menos de quatro meses. Consulte todas as condições aqui.

Paulo Santos doou medula óssea a um inglês há dois anos


Na sala de espera, Paulo Santos aguarda a sua vez para, mais uma vez, dar parte de si. Fá-lo desde os 25 anos, altura em que também se registou como dador de medula. O procedimento implica apenas retirar mais um tubo de sangue e preencher um inquérito. Neste caso, a idade limite para ser dador são os 45 anos. A inscrição é feita uma vez e é válida até aos 55 anos, idade a partir da qual os dadores são retirados da base de dados.

Em Braga, não são feitos transplantes de medula, mas as amostras são enviadas para o Porto. O bracarense, agora com 37 anos, sabe que já fez a diferença na vida de alguém. Há dois anos, em plena pandemia, o telefone tocou. Do outro lado, um pedido de ajuda. Alguém, em Inglaterra, compatível consigo, precisava que doasse medula óssea. Não hesitou. A resposta foi sim.

A medula óssea é um tecido gelatinoso, localizado no interior do osso, que contém células estaminais, muitas vezes a única forma de obter a remissão de doenças oncológicas.

Há duas formas de doar a medula: através do método de aférese ou do método de punção. No primeiro caso, implica a colocação de um cateter através do qual o sangue circula por uma máquina que recolhe apenas as células necessárias para o transplante, devolvendo ao dador as restantes células e o plasma. Neste caso, o dador deve fazer durante 5 dias antes uma injeção subcutânea de um medicamento chamado ‘factor de crescimento’ cujo objetivo é fazer com que as células passem da medula óssea para o sangue. Durante o período de preparação, podem surgir algumas dores de cabeça ou musculares.

O segundo método passa pela colheita direta na medula óssea, existente nos ossos da bacia, que implica uma ida bloco operatório e uma anestesia geral, onde é retirada a necessária quantidade de medula óssea que é administrada ao doente através da veia, tal como uma transfusão. Com o efeito da anestesia, não há dor associada.

O método escolhido é, normalmente, o que for mais adequado ao doente, mas a decisão final é sempre do dador. Diz, quem já passou pelo processo, como é o caso de Paulo, que o processo “não dói e a sensação de salvar a vida de alguém compensa qualquer constrangimento”.

No caso do bracarense foi usado o método de aférese, o mais habitual. O tratamento inicia uns dias antes do transplante e, durante esse período, Paulo apenas sentiu “dores de cabeça e musculares, como se avizinhasse uma gripe”. “No dia, o processo em si é simples, é como se estivéssemos a dar sangue”. Tempos depois, Paulo recebeu uma carta da pessoa a quem doou a medula. “Dizia que estava a correr tudo bem e que lhe dei uma nova oportunidade na vida dele”, revelou em entrevista à RUM. Se o telefone voltar a tocar, este bracarense garante que voltará a doar. Os envolvidos no processo, dador e doente, nunca são identificados, a não ser a nacionalidade. Paulo não sabe quem salvou em Inglaterra e o doente em causa não sabe quem foi o português que lhe deu uma nova oportunidade de viver.

Segundo o Instituto Português de Transplantação, o dador não tem qualquer tipo de obrigação legal, mas deve lembrar-se que o seu compromisso é vital para outra pessoa e que desistir do processo pode significar a morte de alguém.

É importante que os dados dos dadores, nomeadamente morada e número de telemóvel ou telefone, estejam atualizados no sistema. Pode atualizar os dados aqui. Devido ao facto de este ser um banco mundial, mesmo quem emigrou pode manter-se como dador, sendo o processo desenvolvido em qualquer registo.

Caso seja contactado e aceite, o dador terá uma avaliação médica, onde é prestada toda a informação sobre o procedimento, e assina o consentimento. Depois disso, terá que relizar alguns exames, como eletrocardiograma e uma radiografia do tórax, sem qualquer custo para si. Após o transplante, o dador terá consulta um mês após a doação e uma por ano durante quatro anos.

Um estudo realizado no IPO do Porto revelou que, ao fim de um mês após a doação de células e medula óssea, cerca de 90% dos dadores têm “recuperação completa e não apresentaram eventos adversos ou sintomas pós-doação”.

Paulo já salvou a vida de alguém e talvez o mesmo tenha acontecido com o sangue que Célia Gomes dá três vezes por ano. A bracarense garante que não vai hesitar se o telefone um dia tocar para dar de si a outra pessoa: “Não me assusta o facto de ser chamada para ser dadora de medula. Deve ser uma sensação boa”, referiu.

Célia Gomes inscreveu-se como dadora de sangue e medula em 2015. “Temos que ter a consciência que é importante ser dador. Na altura em que me tornei dadora de sangue e de medula, houve um apelo para uma amiga de uma colega. Cada vez que venho aqui, saio com a sensação de dever cumprido”, garantiu.

O diretor do serviço de Imunohemoterapia lembra que não há nada que substitua o sangue, não se compra e não se fabrica”. “Só temos sangue se as pessoas o doarem e essa é a maior manifestação de solidariedade. É dar algo de nós para salvar um doente”, finalizou.

Solidariedade em números 


O Registo Português de Dadores de Medula Óssea foi criado em 1995, pelo ministério da Saúde, e conta com 400 mil inscritos, 61% mulheres e 39% homens, tornando Portugal o 4.º país da Europa com maior número de doadores. Desde 2000, só o IPO do Porto, um dos seis centros de transplantação do país, enviou 700 produtos para 36 países. Em 2021, realizaram-se 50 doações que foram exportadas para 13 países diferentes. Acrescem ainda 38 colheitas a dadores familiares e 142 colheitas autólogas, exclusivamente para transplante de doentes do IPO do Porto.

Em 2017 foram realizadas 89 colheitas em dadores voluntários nacionais das quais 40 foram destinadas a recetores nacionais e as restantes para 14 países, nomeadamente EUA (12), Alemanha (7), Espanha (7), Inglaterra (5), França (3), entre outros. O registo mundial tem mais de 40 milhões de dadores, distribuídos por 55 países.

Segundo o Instituto Português do Sangue e Transplantação, em 2021, o número de dadores de sangue aumentou 8% face ao ano anterior. São mais de 233 mil os portugueses inscritos e responsáveis pelas 310 mil dádivas realizadas o ano passado, 41% foram recolhidas na região Norte. Em Braga, contaram-se 7456, em Famalicão 2206. O Hospital de Braga e o Centro Hospitalar do Médio Ave, em Famalicão, são os dois centros de colheita mais próximos. Dos mais de 233 mil dadores de sangue, em 2021, 43 mil doaram pela primeira vez e 169 551 (83%) são dadores regulares.

O número de dadores jovens, até aos 24 anos, tem vindo a aumentar progressivamente – passando de 14% em 2017 para 16,5% em 2021 . Ainda assim, o maior número de dadores (44%) está na faixa etária dos 25 aos 44 anos.

O Relatório da Atividade Transfusional e do Sistema Português de Hemovigilância, relativo a 2021, comprova uma “inversão da tendência da diminuição do número de dadores e de dádivas de sangue que se registava em Portugal desde 2008”. “Em 2021 verificou-se um aumento no número de inscrições para a dádiva de sangue, no número de dadores que realizaram dádiva (valor superior ao registado em 2018), no número de dádivas e no número de dadores de primeira vez. Associado a este aumento do número de dadores que doaram pela primeira vez em 2021, verifica-se um aumento na frequência relativa de dadores no grupo etário dos 18 aos 24 anos e a distribuição nos grupos etários mostra um rejuvenescimento da população de dadores, que importa manter”, lê-se no relatório.

Também o número de doentes transfundidos tem aumentado, como revelou à RUM António Marques. “Verifica-se um aumento de 7% no número de doentes transfundidos em relação a 2020, recuperando os números verificados em 2018 e 2019”, comprova o relatório.

A pandemia parece não ter sido problemática no Banco de Sangue do Hospital de Braga, mas o cenário muda a todo o instante. A solidariedade corre nas veias de todas as pessoas saudáveis, entre os 18 e os 65 anos, com mais de 50 quilos. A vida de alguém pode mesmo depender da sua.

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Liliana Oliveira
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Abel Duarte
NO AR Abel Duarte A seguir: Elisabete Apresentação às 11:00
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